terça-feira, 2 de março de 2010

Ataque ao Carnabranco

Carlinhos Brown rebate Caetano e diz que o negro virou “exótico” na festa da Bahia

21/02/2007

Sérgio Maggio
Enviado especial


Salvador – Uma panela de pressão gigante, com pipocas até pelas bordas, atravessou o circuito Barra-Ondina, na madrugada da terça-feira. Atrás dela, o cacique Carlinhos Brown dava o comando: “Deixem que o povo empurre”. No chão, o artista ofereceu 30 mil tiaras para que os foliões acompanhassem o trio elétrico Pipocão, mais uma novidade do criador que quer devolver à Bahia a alegria original de se brincar na rua sem pagar até R$ 1 mil por um abadá e, assim, ter direito a um cercadinho feito por cordas que separam turistas dos moradores da cidade. “As cordas amarram, aprisionam. Como artista, minha modesta contribuição é devolver ao povo o que eu recebi. Não peço para que todos sigam essa proposta. Mas que respeitem a minha opção de institucionalizar as ruas como espaço livre para quem está impedido de seguir atrás do trio”, anunciou.

Carlinhos Brown é voz na contramão do carnaval industrial, que tomou corpo na Bahia. Ano passado, ele falou de apartheid diante do camarote do ministro da Cultura, Gilberto Gil, ao se referir à população pobre e negra de Salvador, excluída da festa. Neste ano, voltou ao tema no começo do carnaval, e provocou uma reação de Caetano Veloso. “Essa mania de ver apartheid em tudo é doente”, disse o compositor baiano. Na madrugada de terça, Brown retomou o assunto. “Caetano não mora na Bahia! Ele não sabe o que é isto aqui” , afirmou ao Correio. “Querem o que para Bahia? O Carnabranco! Que a gente pare de pedir a paz? Perdemos o espaço. O negro é o exótico da festa. Tudo o que resta é falso.

O fato é que Carlinhos Brown tem autoridade para falar sobre exclusão. Além de intenso trabalho educacional e social, ele mais uma vez faz a diferença no carnaval previsível dos blocos de trio. Além do Pipocão, criou o programa mais quente da folia deste ano: o Baile du Bloco Parado, no antigo Mercado de Ouro, local que ele transformou no Museu du Ritmo. Das músicas que mais tocaram no carnaval deste ano, seis são de autoria de Brown. Cachaça é forte candidata a hino da folia.

Navio negreiro

Em Salvador, é crescente a discussão sobre os rumos do carnaval. Frases como “Todo bloco de corda tem um pouco de navio negreiro” e “Ontem, era a escravidão. Hoje, o racismo” foram estampadas no desfile da Mudança do Garcia, tradicional bloco, que data dos anos de 1920. Sem cordas, populares e ativistas do movimento civil organizado entraram no circuito da festa com protesto. “A praça não é mais do povo”, reclamou o poeta Marcos Peralva, caracterizado de Castro Alves. “O que você enxerga é um mar de brancos cercado por negros de todos os lados”, observa a pesquisadora da Universidade Federal da Bahia Ana Alice Costa.

Na concentração dos blocos, a constatação é evidente. Sentados no chão, aguardando a saída dos trios, só afrodescendentes. Babá, jovem negro de cabelos tingidos de loiro, ganha R$ 18 por noite para puxar as cordas de quem pagou R$ 800. “A gente ganha também uma garrafa de quente, um biscoito e um suco com data de validade vencida. A verdade tem que ser dita. Há racismo aqui dentro. Ontem, uma gringa passou a mão nos braços, com cara de nojo, porque uma cordeira suada encostou nela. Xinguei ela de tudo quanto foi nome, mas ela não entendeu nada”, conta o rapaz.

Em coletiva de avaliação da folia, o governador da Bahia, Jaques Wagner (PT), declarou que “o povo, no carnaval, trabalha e se diverte”. “Essa afirmação é infame”, critica Ana Costa. “Um menino que cata latinhas e dança ao mesmo tempo pode até brincar, mas está configurada a exclusão. Não entendo por que o poder público precisa subsidiar os milionários blocos da Bahia.” Depois do início da polêmica, o governador anunciou revisão nos critérios de subsídios para tentar deixar o carnaval “mais democrático”.

Ana Lúcia Castro, 20 anos, com cabelos de trancinhas e corpo esguio de modelo, aceitou puxar as cordas pela primeira vez. Foi a maneira que arranjou para “brincar” ao som da banda Asa de Águia. “Os fiscais não deixam a gente dançar. Pode remexer, mas tem que segurar o tempo inteiro as cordas”, revela. Curiosamente, a imagem da linda garota está estampada no bairro de Itapoã. Ela foi fotografada por Sérgio Guerra, na mostra Negroamor, que espalhou por Salvador a beleza do seu povo preto, na tentativa de melhorar a auto-estima daqueles que constituem a maioria da população soteropolitana. São as contradições da primeira capital do Brasil.


Fonte Jornal "Correio Braziliense" de 21.02.2007

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