segunda-feira, 19 de setembro de 2011
segunda-feira, 15 de agosto de 2011
Um pouco menos de hipocrisia
Drauzio Varella
15 de agosto de 2011
O uso de droga ilícita é como a moda: vem e passa. Em 1989, comecei um trabalho voluntário em presídios, que dura até hoje. No Carandiru, naquela época, a moda era injetar cocaína na veia. Os presos vinham pele e osso, com os olhos ictéricos e os braços marcados pelas agulhas e os abscessos causados por elas.
Naquele ano, colhemos amostras de sangue dos 1.492 detentos registrados no programa de visitas íntimas: 17,3% dos homens eram HIV-positivos e 60% estavam infectados pelo vírus da hepatite C.
A partir desses dados começamos um trabalho de prevenção que constava de palestras e vídeos educativos. Lembro que o diretor-geral tentou me convencer da inutilidade da iniciativa: “O senhor está sendo ingênuo. Quem injeta cocaína na veia é irrecuperável, não tem mais nada a perder”.
Estava errado, o resultado foi surpreendente: em 1992, a cocaína injetável foi varrida do mapa, fenômeno que se espalhou pelos outros presídios e pelos becos da periferia de São Paulo. A moda do baque na veia tinha chegado ao fim.
Não havia motivo para comemoração, no entanto: naquele ano, o crack invadiu o Carandiru. Para entender o que se passou é preciso conhecer um pouco da farmacologia da cocaína.
Quando inalada sob a forma de pó, a cocaína é absorvida através da mucosa nasal, penetra os vasos sanguíneos superficiais, cai na circulação e atinge o cérebro. O processo é relativamente lento, a euforia aumenta gradativamente, atinge o pico e diminui até desaparecer.
Injetada na veia, vai direto para o coração, depois para os pulmões, e volta para o coração, de onde será bombeada para o cérebro. O efeito é muito mais rápido e passageiro. A sensação é de um baque de prazer, daí o nome “baque na veia”, experiência muito mais intensa que a obtida por inalação.
Fumada na forma de crack, a droga chega ao cérebro mais depressa do que ao ser injetada na veia, porque não perde tempo na circulação venosa, cai direto no pulmão. Do cachimbo ao cérebro, leva de seis a dez segundos. O efeito é semelhante ao baque da injeção intravenosa, porém, ainda mais rápido e fugaz.
O crack substituiu o baque e se disseminou pela cadeia feito água morro abaixo. Quando um preso negava ser usuário, eu partia do princípio de que mentia. Devo ter cometido pouquíssimas injustiças.
Na segunda metade dos anos 1990, uma das facções que dominavam os presídios se sobrepôs às demais. Seus líderes rapidamente perceberam que os craqueiros criavam obstáculos para a ordem econômica que pretendiam implantar. A solução foi proibir o crack.- A lei é clara: fumou na cadeia, apanha de pau; vendeu, morre.
Ao chegar, o egresso da cracolândia dorme dois ou três dias consecutivos; só acorda para as refeições. Depois desse período, passa alguns dias um pouco agitado, mas aprende a viver sem crack.
A cocaína não é tão aditiva como muitos pensam, se o usuário não tiver acesso a ela ou aos locais onde a consumia ou até entrar em contato com companheiros sob o efeito dela, nada acontece. Ao contrário, a simples visão da droga faz disparar o coração, provoca cólicas intestinais, náuseas e desespero.
Quebrar essa sequência perversa de eventos neuroquímicos não é tão difícil: basta manter o usuário longe do crack.
Vale a pena chegar perto de uma cracolândia para entender como é primária a ideia de que o craqueiro pode decidir em sã consciência o melhor caminho para a sua vida. Com o crack ao alcance da mão, ele é um farrapo automatizado que não tem outro desejo senão conseguir a próxima pedra para o cachimbo.
Veja a hipocrisia: não podemos interná-lo contra a vontade, mas podemos mandá-lo para a cadeia assim que roubar o primeiro celular.
Não seria mais lógico construir clínicas pelo País inteiro com pessoal treinado para lidar com os dependentes? Não sairia mais em conta do que arcar com os custos materiais e sociais da epidemia?
É claro que não sou ingênuo a ponto de imaginar que ao sair desses centros de recuperação o ex-usuário se transformaria em cidadão exemplar. Mas ao menos haveria uma chance. Se continuas-se na sarjeta, que oportunidade teria?
E se, ao ter alta da clínica, recebesse acompanhamento ambulatorial, apoio psicológico e oferta de um trabalho decente desde que se mantivesse de cara limpa documentada por exames periódicos rigorosos, não aumentaria a probabilidade de ficar curado?
Países como a Suíça, que permitiam o uso livre de drogas em espaços públicos, abandonaram a prática ao perceber que a mortalidade aumenta. Nós convivemos com as cracolândias sem poder internar seus habitantes para tratá-los, mas exigimos que a polícia os prenda quando se comportam mal. Existe estratégia mais estúpida?
Na penitenciária feminina, onde eu trabalho hoje, atendo muitas ex-usuárias de crack. Quando lhes pergunto se são a favor da internação compulsória dos dependentes da cracolândia, todas respondem que sim. Nunca encontrei uma que sugerisse o contrário.
Fonte: Revista Carta Capital de 15.08.2011.
15 de agosto de 2011
O uso de droga ilícita é como a moda: vem e passa. Em 1989, comecei um trabalho voluntário em presídios, que dura até hoje. No Carandiru, naquela época, a moda era injetar cocaína na veia. Os presos vinham pele e osso, com os olhos ictéricos e os braços marcados pelas agulhas e os abscessos causados por elas.
Naquele ano, colhemos amostras de sangue dos 1.492 detentos registrados no programa de visitas íntimas: 17,3% dos homens eram HIV-positivos e 60% estavam infectados pelo vírus da hepatite C.
A partir desses dados começamos um trabalho de prevenção que constava de palestras e vídeos educativos. Lembro que o diretor-geral tentou me convencer da inutilidade da iniciativa: “O senhor está sendo ingênuo. Quem injeta cocaína na veia é irrecuperável, não tem mais nada a perder”.
Estava errado, o resultado foi surpreendente: em 1992, a cocaína injetável foi varrida do mapa, fenômeno que se espalhou pelos outros presídios e pelos becos da periferia de São Paulo. A moda do baque na veia tinha chegado ao fim.
Não havia motivo para comemoração, no entanto: naquele ano, o crack invadiu o Carandiru. Para entender o que se passou é preciso conhecer um pouco da farmacologia da cocaína.
Quando inalada sob a forma de pó, a cocaína é absorvida através da mucosa nasal, penetra os vasos sanguíneos superficiais, cai na circulação e atinge o cérebro. O processo é relativamente lento, a euforia aumenta gradativamente, atinge o pico e diminui até desaparecer.
Injetada na veia, vai direto para o coração, depois para os pulmões, e volta para o coração, de onde será bombeada para o cérebro. O efeito é muito mais rápido e passageiro. A sensação é de um baque de prazer, daí o nome “baque na veia”, experiência muito mais intensa que a obtida por inalação.
Fumada na forma de crack, a droga chega ao cérebro mais depressa do que ao ser injetada na veia, porque não perde tempo na circulação venosa, cai direto no pulmão. Do cachimbo ao cérebro, leva de seis a dez segundos. O efeito é semelhante ao baque da injeção intravenosa, porém, ainda mais rápido e fugaz.
O crack substituiu o baque e se disseminou pela cadeia feito água morro abaixo. Quando um preso negava ser usuário, eu partia do princípio de que mentia. Devo ter cometido pouquíssimas injustiças.
Na segunda metade dos anos 1990, uma das facções que dominavam os presídios se sobrepôs às demais. Seus líderes rapidamente perceberam que os craqueiros criavam obstáculos para a ordem econômica que pretendiam implantar. A solução foi proibir o crack.- A lei é clara: fumou na cadeia, apanha de pau; vendeu, morre.
Ao chegar, o egresso da cracolândia dorme dois ou três dias consecutivos; só acorda para as refeições. Depois desse período, passa alguns dias um pouco agitado, mas aprende a viver sem crack.
A cocaína não é tão aditiva como muitos pensam, se o usuário não tiver acesso a ela ou aos locais onde a consumia ou até entrar em contato com companheiros sob o efeito dela, nada acontece. Ao contrário, a simples visão da droga faz disparar o coração, provoca cólicas intestinais, náuseas e desespero.
Quebrar essa sequência perversa de eventos neuroquímicos não é tão difícil: basta manter o usuário longe do crack.
Vale a pena chegar perto de uma cracolândia para entender como é primária a ideia de que o craqueiro pode decidir em sã consciência o melhor caminho para a sua vida. Com o crack ao alcance da mão, ele é um farrapo automatizado que não tem outro desejo senão conseguir a próxima pedra para o cachimbo.
Veja a hipocrisia: não podemos interná-lo contra a vontade, mas podemos mandá-lo para a cadeia assim que roubar o primeiro celular.
Não seria mais lógico construir clínicas pelo País inteiro com pessoal treinado para lidar com os dependentes? Não sairia mais em conta do que arcar com os custos materiais e sociais da epidemia?
É claro que não sou ingênuo a ponto de imaginar que ao sair desses centros de recuperação o ex-usuário se transformaria em cidadão exemplar. Mas ao menos haveria uma chance. Se continuas-se na sarjeta, que oportunidade teria?
E se, ao ter alta da clínica, recebesse acompanhamento ambulatorial, apoio psicológico e oferta de um trabalho decente desde que se mantivesse de cara limpa documentada por exames periódicos rigorosos, não aumentaria a probabilidade de ficar curado?
Países como a Suíça, que permitiam o uso livre de drogas em espaços públicos, abandonaram a prática ao perceber que a mortalidade aumenta. Nós convivemos com as cracolândias sem poder internar seus habitantes para tratá-los, mas exigimos que a polícia os prenda quando se comportam mal. Existe estratégia mais estúpida?
Na penitenciária feminina, onde eu trabalho hoje, atendo muitas ex-usuárias de crack. Quando lhes pergunto se são a favor da internação compulsória dos dependentes da cracolândia, todas respondem que sim. Nunca encontrei uma que sugerisse o contrário.
Fonte: Revista Carta Capital de 15.08.2011.
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quinta-feira, 2 de junho de 2011
Música para ver, cinema para ouvir
27/05/2011
Por José Geraldo Couto, editor do Blog do Zé Geraldo
Um dos mais influentes músicos do século 20, Miles Davis, que estaria completando hoje [26/05/11] 85 anos, tem mais a ver com o cinema do que geralmente se imagina.
O timbre inconfundível de seu trompete aparece em 48 longas-metragens, fora aqueles em que não foi creditado. Mas ele compôs relativamente pouco para cinema: levam a sua assinatura um punhado de documentários e apenas três longas de ficção: Ascensor para o cadafalso (1957), de Louis Malle, Siesta – Marcas de uma paixão (1987), de Mary Lambert, e Dingo (1991), de Rolf de Heer.
Desses, o mais importante, de longe, é o primeiro. O thriller de Louis Malle deve muito de sua elegância e densidade emocional ao cool jazz de Miles Davis. A trilha, repleta de improvisos do próprio trompetista, marcou época e influenciou boa parte da música dos policiais psicológicos/existenciais europeus e americanos feitos desde então.
Segue aqui um registro precioso: Miles Davis improvisando para a gravação da trilha sonora diante das imagens projetadas do filme. Poucas vezes houve uma comunhão tão perfeita entre música e cinema. O próprio Malle fala sobre isso ao final do vídeo.
Como curiosidade, vai também um trecho de Dingo em que Miles aparece como ator, no papel do trompetista Billy Cross, ídolo do jovem branquelo John “Dingo” Anderson (Colin Friels), que sai do interior da Austrália para tentar a sorte como músico nos clubes de jazz de Paris. Até onde eu sei, o filme não foi exibido comercialmente no Brasil (só em festivais) e ainda não está disponível em DVD.
O filme pode não ser grande coisa, mas a música… Ouça só:
E, só para completar a fatura, um trecho de Siesta, com Ellen Barkin, Isabella Rosselini e a música do homem:
José Gerado Couto é crítico de cinema e tradutor, foi durante anos colunista na Folha, escreve suas criticas hoje em seu próprio blog e na revista Carta Capital
Fonte: Site Outras Palavras em 27.05.2011
Por José Geraldo Couto, editor do Blog do Zé Geraldo
Um dos mais influentes músicos do século 20, Miles Davis, que estaria completando hoje [26/05/11] 85 anos, tem mais a ver com o cinema do que geralmente se imagina.
O timbre inconfundível de seu trompete aparece em 48 longas-metragens, fora aqueles em que não foi creditado. Mas ele compôs relativamente pouco para cinema: levam a sua assinatura um punhado de documentários e apenas três longas de ficção: Ascensor para o cadafalso (1957), de Louis Malle, Siesta – Marcas de uma paixão (1987), de Mary Lambert, e Dingo (1991), de Rolf de Heer.
Desses, o mais importante, de longe, é o primeiro. O thriller de Louis Malle deve muito de sua elegância e densidade emocional ao cool jazz de Miles Davis. A trilha, repleta de improvisos do próprio trompetista, marcou época e influenciou boa parte da música dos policiais psicológicos/existenciais europeus e americanos feitos desde então.
Segue aqui um registro precioso: Miles Davis improvisando para a gravação da trilha sonora diante das imagens projetadas do filme. Poucas vezes houve uma comunhão tão perfeita entre música e cinema. O próprio Malle fala sobre isso ao final do vídeo.
Como curiosidade, vai também um trecho de Dingo em que Miles aparece como ator, no papel do trompetista Billy Cross, ídolo do jovem branquelo John “Dingo” Anderson (Colin Friels), que sai do interior da Austrália para tentar a sorte como músico nos clubes de jazz de Paris. Até onde eu sei, o filme não foi exibido comercialmente no Brasil (só em festivais) e ainda não está disponível em DVD.
O filme pode não ser grande coisa, mas a música… Ouça só:
E, só para completar a fatura, um trecho de Siesta, com Ellen Barkin, Isabella Rosselini e a música do homem:
José Gerado Couto é crítico de cinema e tradutor, foi durante anos colunista na Folha, escreve suas criticas hoje em seu próprio blog e na revista Carta Capital
Fonte: Site Outras Palavras em 27.05.2011
Poema: "O Valioso Tempo Dos Maduros" de Mário de Andrade
"Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui
para a frente do que já vivi até agora.
Tenho muito mais passado do que futuro.
Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas..
As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam
poucas, rói o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.
Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflamados.
Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram,
cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir
assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar
da idade cronológica, são imaturos.
Detesto fazer acareação de desafectos que brigaram pelo majestoso cargo
de secretário geral do coral.
‘As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos’.
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência,
minha alma tem pressa…
Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana,
muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com
triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua
mortalidade,
Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade,
O essencial faz a vida valer a pena.
E para mim, basta o essencial!"
Fonte: Blog Tribo dos Textos
para a frente do que já vivi até agora.
Tenho muito mais passado do que futuro.
Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas..
As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam
poucas, rói o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.
Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflamados.
Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram,
cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir
assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar
da idade cronológica, são imaturos.
Detesto fazer acareação de desafectos que brigaram pelo majestoso cargo
de secretário geral do coral.
‘As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos’.
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência,
minha alma tem pressa…
Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana,
muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com
triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua
mortalidade,
Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade,
O essencial faz a vida valer a pena.
E para mim, basta o essencial!"
Fonte: Blog Tribo dos Textos
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