sexta-feira, 13 de junho de 2008

O cotidiano em um país miserável


Reuters
Grávida vende manga na favela de Cité Soleil, em Porto Príncipe, a capital do Haiti, o país caribenho mais pobre do hemisfério ocidental


Por César Felício, de Porto Príncipe
13/06/2008


A miséria e o colorido intenso se entrelaçam e se explicam em Porto Príncipe, a capital com cerca de 2 milhões de habitantes do país caribenho considerado o mais pobre do hemisfério ocidental. As escolas públicas praticamente inexistem no Haiti. As particulares cobram mensalidades que podem ultrapassar facilmente os US$ 100, em um país onde o salário mínimo é de US$ 1,80 por dia.

A conseqüência direta é a taxa de analfabetismo de 48% da população. E o drible dos haitianos em busca da sobrevivência está nos muros e nas paredes das casas de bairros como Delmas e Cité Soleil: é raro encontrar uma loja que não esteja toda pintada para permitir a comunicação visual. Onde se desenha uma mulher sendo penteada, lá é o cabeleireiro. Um porco ou uma galinha indicam um açougue e assim por diante.

As ruas que levam à parte alta de Porto Príncipe, onde mora cerca de 20% da população que está acima da linha da pobreza, estão travadas por um congestionamento permanente. A razão não é o excesso dos carros em mau estado de conservação, alguns com o cinto de segurança colocado de modo a segurar a porta, mas a falta de tudo. Não há calçadas que separem pedestres e carros nem semáforos a ordenar os cruzamentos. Em dois dias inteiros circulando pela cidade, apenas dois sinais de trânsito foram avistados.

O palácio do governo, um colosso branco plantado no centro da cidade, chega a ofuscar os olhos ao refletir o sol. Está em frente de uma grande praça, o Campo de Marte, e cercado por camelódromos e casebres coloridos. O bem-estar haitiano está a muitos quilômetros dali. O subúrbio de Petionville é normalmente descrito como o bairro da elite na capital haitiana, mas nem remotamente pode ser comparado a locais como os Jardins, em São Paulo; o Leblon, no Rio; ou o Lago Sul, em Brasília. No alto de colinas onde a vegetação inexistente nas regiões centrais da cidade se faz presente, Petionville entremeia favelas com núcleos acastelados, espécie de condomínios onde um punhado de casas de alto padrão é mantido isolado.

Um deles é o criado em torno do Hotel Montana, o melhor do Haiti, que cobra US$ 5 por dia dos hóspedes para financiar o uso dos geradores de energia elétrica. Os proprietários, a família Cardozo, é renomada como a mais rica do país. Quase anexos ao hotel estão os escritórios de vários órgãos internacionais, a embaixada britânica e residências de diplomatas.

Outro núcleo, longe de Petionville, é o que gravita em torno da embaixada americana, em Tabarre, a meio caminho entre o centro da cidade e o quartel das tropas da ONU no país. Na mesma direção fica o solitário orgulho industrial haitiano: a cervejaria Brana, da família Madsen, associada à Pepsi, que produz a Prestige, uma lager com acentuado sabor de cereal.

Substituídos a cada seis meses, em média, os soldados brasileiros são orientados a se entrosar com a população. Organizam peladas no fim de semana, distribuem bombons em favelas como Cité Soleil e Belair e até ensinam palavras em português quando abordados. No entanto, o crescimento do clima da hostilidade da população é percebido com clareza. "Passei uma temporada em Angola e agora no Haiti. A pobreza é a mesma, mas as pessoas não. Aqui acontecem crueldades inacreditáveis. As pessoas não têm Deus no coração", comentou um devoto fuzileiro naval, que patrulha as ruas carregando 15 quilos de apetrechos na farda.

Na distribuição de comida organizada pelo Exército em Cité Soleil, assistida pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, e convenientemente distante da feira de alimentos de Porto Príncipe - realizada em uma espécie de lixão, a "cozinha do inferno" -, os militares brasileiros separavam dois blocos: um ajuizadamente na fila aguardava para receber um saco com fubá, óleo de soja, peixe seco e arroz. O outro cercava o local e reclamava por não ter recebido a senha para entrar. Na saída de cena dos jornalistas, aproveitaram para gritar frases como "tenho fome" e "quero comer". Grávida, uma garota com cerca de 14 ou 15 anos ainda falou "Brésil" e acompanhou a menção com um gesto obsceno.


Fonte: Jornal "Valor Econômico" de 13.06.2008.

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