sexta-feira, 20 de junho de 2008

Sem a bênção do vovô


A sombra de Jorge Amado: "Minha única preocupação é ser fiel ao seu olhar humanista. Meu avô gostava e acreditava nas pessoas", afirma a diretora Cecília Amado - Niels Andreas/Folha Imagem

Por Elaine Guerini, para o Valor, de São Paulo
20/06/2008


Para não se chatear, Jorge Amado preferia não ver as versões cinematográficas de seus sucessos literários, como "Dona Flor e Seus Dois Maridos" (Bruno Barreto), "Jubiabá" (Nelson Pereira dos Santos) e "Tieta do Agreste" (Carlos Diegues), entre outros títulos baseados na obra do escritor, ainda hoje o mais popular no Brasil. "Quando o cineasta era seu amigo, aí que ele não assistia mesmo. No fundo, ele odiava as adaptações", conta Cecília Amado, neta do autor baiano que morreu em 2001, aos 88 anos. Saber que o avô dificilmente aprovaria a transposição de "Capitães de Areia" para as telas é o que, ironicamente, deixa Cecília à vontade para traduzir em imagens as páginas do romance publicado em 1937. "Minha única preocupação é ser fiel ao seu olhar humanista. Meu avô gostava e acreditava nas pessoas."

Aos 31 anos, Cecília estréia na cadeira de diretor nessa adaptação do livro que vendeu mais de 5 milhões de exemplares ao redor do mundo, com publicação em 16 línguas. Por "registrar a juventude num estado de liberdade bruto", o livro sobre meninos abandonados que aterrorizam Salvador - mas não passam de crianças sedentas de afeto - foi aquele que marcou a sua adolescência. "A história continua relevante nos dias de hoje. A violência não é tão explícita, partindo para o corpo-a-corpo, mas mascarada, gerada pela desigualdade social", afirma Cecília, que inicia as filmagens entre setembro e outubro na capital da Bahia.

Relançado em março pela Companhia das Letras, "Capitães de Areia" foi escrito quando Amado tinha 24 anos. "Por ser tão jovem na época, obviamente há uma certa ingenuidade no romance, o que o impede de ser traduzido ao pé da letra no cinema." Por essa razão, a diretora preferiu ambientar a trama nos anos 1950, quando a Bahia já estava mais desenvolvida - o que inevitavelmente agravou a questão da violência. O que não muda é o perfil dos personagens, como Pedro Bala, o líder dos arruaceiros, Volta Seca, que sonha se tornar cangaceiro, o malandro Gato, que acaba conquistando a prostituta Dalva, e Dora, considerada uma mãe pelos meninos. "Já o tratamento é contemporâneo e jovem. Há um frescor na linguagem, no visual e na música." A cineasta encarregou Carlinhos Brown da trilha sonora. "Queria uma leitura atual da baianidade."

Para dar autenticidade ao roteiro, que Cecília escreveu com Hilton Lacerda ("Árido Movie"), a diretora busca o elenco nas ONGs de Salvador. A princípio, 90 crianças e adolescentes foram escolhidos entre os meninos de rua que estudam teatro, artes, música e capoeira. E no processo final da seleção, em andamento, 12 serão escalados para os papéis principais e 15 formarão o elenco de apoio. "Fiz tudo de maneira artesanal, para que mesmo os técnicos estivessem envolvidos até a alma com os garotos. Isso precisa estar impregnado no filme", conta a cineasta, que ganhou experiência nos sets de "Batismo de Sangue" (2006), "Jogo Subterrâneo" (2005), "Onde Anda Você" (2004) e "Mauá - O Imperador e o Rei" (1999), como assistente de direção.



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Patrícia Pillar, Alice Braga e Lázaro Ramos estão na mira dos produtores para os principais papéis adultos do longa-metragem
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O primeiro filme em que trabalhou foi, coincidência ou não, "Tieta do Agreste", inspirado na obra de Amado, no qual Cecília começou como assistente de continuidade. "Na época, a reação do meu avô me surpreendeu", lembra-se. Por mais que toda a família esperasse vê-la enveredando pela literatura, o escritor ficou feliz quando soube de sua paixão pelo cinema. "Ele revelou que tinha pensado em ser cineasta também. Talvez por isso seus romances sejam tão cinematográficos, com tanta riqueza de detalhes na descrição visual dos cenários, dos personagens e das situações."

Por mais que sua intenção seja a de realizar um filme de arte, Cecília acredita no potencial comercial dessa versão de "Capitães de Areia", orçada em R$ 7 milhões. "Por ser o livro mais vendido de meu avô, a adaptação gera um interesse espontâneo. Tanto no Brasil quanto no exterior", diz. O elenco ainda não está confirmado, mas os papéis adultos devem cair nas mãos de atores conhecidos, o que promete atrair mais espectadores aos cinemas nacionais. "Convidamos Patrícia Pillar para interpretar Dora, Alice Braga para encarnar Dalva e Lázaro Ramos para viver o Querido-de-Deus", conta o produtor Bruno Stroppiana, da Sky Light Cinema. Ele lembra que o filme brasileiro de maior bilheteria de todos os tempos também foi baseado na obra de Amado: "Dona Flor e Seus Dois Maridos", que levou mais de 10,7 milhões pessoas aos cinemas.

Tudo isso só reforça a expectativa em torno de "Capitães de Areia", que promete ser uma co-produção com a França e com Portugal. "A produtora francesa Art-Melle e a portuguesa MGN estão interessadas no projeto." Stroppiana comenta ainda que a última adaptação de um livro de Amado, "Tieta do Agreste" (outra produção da Sky Light), gerou cerca de US$ 1 milhão em vendas internacionais. "Segundo pesquisas, o romance 'Capitães de Areia' ainda vende 5 mil exemplares por ano na França, o que é excelente para um título com mais de 70 anos."

Essa não será a primeira adaptação da história dos meninos que não conseguem preencher o vazio existencial por causa do abandono. Talvez a versão mais famosa no país seja a minissérie de TV, exibida pela Bandeirantes, com direção de Walter Lima Jr., em 1989. E a popularidade da obra também se estendeu aos palcos, aos quadrinhos e mesmo ao cinema. Foram várias montagens teatrais, como a adaptação assinada pelo padre Valter Souza, de 1958, em Salvador; a de Carlos Wilson, que circulou pelo Brasil e pelo exterior em diferentes períodos; e a de Roberto Bomtempo, de 2002. "Capitães de Areia" também inspirou espetáculos de dança na Alemanha, em 1971, em Minas e na França, em 1988, e na Argentina, em 1987 - além de virar uma história em quadrinhos, assinada por Ruy Trindade e publicada pela Secretaria da Cultura e Turismo do Estado da Bahia em 1995.

A versão para o cinema, batizada de "The Sandpit Generals", do americano Hall Bartlet, praticamente não conta - apesar de a produção de 1971 ter conquistado um prêmio importante no Festival de Moscou. "O filme nunca foi exibido em circuito comercial nem no Brasil nem nos Estados Unidos. E ainda revela um olhar estrangeiro sobre a trama", comenta Cecília. "Só alguém que conhece bem o imaginário popular em que a história está inserido pode entender profundamente a obra."


Fonte: Jornal "Valor Econômico" de 20.06.2008

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