quarta-feira, 11 de junho de 2008

Pondo a Amazônia em seu devido lugar

Wanderley Guilherme dos Santos

30/05/2008 - Jornal Valor Econômico

A Amazônia é matéria de soberania. Em segundo lugar, apresenta desafio à promoção de um desenvolvimento ecologicamente sustentável. Em último caso, trata-se de integrá-la a qualquer custo imediato. Integrar a Amazônia e o Centro-Oeste. Depõe a história que a sustentabilidade é recuperável - até animais extintos são trazidos à vida pela reprodução do DNA. A perda de território nunca foi. Não existem dois mapas geográficos iguais entre si. Quero dizer, mapas históricos ou contemporâneos. Sem dúvida, fauna, flora e epiderme do planeta têm sido profundamente sacrificadas pela intervenção humana, século após século, mas o traçado de fronteiras e o poderio dos países são igualmente mortais. Nenhum império resiste ao tempo (lembrar o império soviético), mas pode durar bastante, vide o império romano.

A propósito, os Estados Unidos não param de expandir-se ao Norte, ao Sul, a Oeste e, pelo estacionamento de tropas, também a Leste, tendo colaborado para modificações geográficas em, pelo menos, três continentes. Nem sempre pelo convencimento ideológico. Na contabilidade de Robert Kagan, estrategista da Carnegie Endowment for International Peace, "entre 1989 e 2001, os Estados Unidos intervieram no exterior, pela força, mais freqüentemente do que em qualquer outro período de sua história - com média de uma nova ação militar significativa a cada 16 meses - e muito mais do que qualquer outro poder no mesmo espaço de tempo". ("The Return of History and the End of Dreams", 2008, pág. 50).

Francis Fukuyama, depois de analisar as crises internacionais que ocorreram no mesmo período, em "State-Building - Governance and World Order in the 21st Century" (2004), aconselha aos americanos que exportem, por assim dizer, estruturas estatais de preferência a instituições políticas democráticas. Segundo Kagan, o mundo não deve alimentar dúvidas sobre o provável comportamento dos Estados Unidos no desenrolar do atual conflito entre as democracias e o que ele designa por autocracias.

Já em "Paradise and Power" (New York, 2004), ele havia advertido a Europa de que os Estados Unidos estavam se preparando para assumir explicitamente seu papel de império e, conseqüentemente, de vir a agir cada vez mais autonomamente, em estrita consulta a seus interesses materiais e estratégicos. Os conceitos de ação legítima e de ação justa estão abalados na recapitulação européia, como se sabe, desde o recente bombardeamento e posterior invasão americana do Iraque. Antes tarde do que nunca, e algum dia o confisco de território mexicano, pelo menos, será devidamente anotado nos anais.

Justiça e legitimidade nas relações internacionais estão abaladas tal como abaladas estão as regiões da Amazônia e do Centro-Oeste brasileiro. Dormentes até há cerca de 30 anos, pertenciam ao Brasil cartográfico, não ao país econômico. Hoje, embora ainda de densidade populacional rarefeita, dispõem de mais de 28 milhões de habitantes, correspondentes a 15% da população total do Brasil, com crescimento econômico a taxas asiáticas. Há 50 anos mal superavam os 7% da população e, economicamente, não passavam de um problema. A transformação de escala foi muito rápida: o crescimento populacional da Região Norte, entre 1950 e 1991, foi de 456% e no Centro-Oeste atingiu a taxa de 442%. O significado desses valores pode ser avaliado pela média nacional de 183%, entre os mesmos anos.

Deslocamentos populacionais de grande porte para as cidades provocam desconforto social, perda de referência axiológica e ansiedade. Acoplados à mobilização estimulada pelos partidos políticos, as novas tensões se refletem nos conflitos tornados mais agudos e na descoberta dos canais eleitorais como tradutores de demandas. No Norte, dentro dos mesmos parâmetros temporais, o eleitorado aumentou em 1426% e no Centro-Oeste, em 1.650%. No Brasil, o crescimento foi de 727%. Hoje, as duas regiões deixaram de ser anotações cartográficas e participam do universo jurídico, político e econômico da nação.



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Estado brasileiro deixa de cumprir suas mínimas obrigações constitucionais em largos trechos do território
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A experiência com formas antiquadas de acumulação material recomenda cautela na incorporação de novos segmentos do território à economia ativa. A audiência imediatamente interessada nesse processo é a própria população brasileira, atenta para os custos intergeracionais do aproveitamento dos recursos naturais e de suas conseqüências. Estão aí os exemplos das grandes potências, em particular os Estados Unidos, cujo histórico de ocupação predatória do planeta deve ser permanentemente lembrado, a fim de que se evite sua repetição. Nem potências emergentes, nomeadamente a Índia e a China, estão isentas de responsabilidade quanto ao legado que destinarão às gerações futuras. O cuidado dos governos atuais com as respectivas próximas gerações bem pode ser uma das vacinas contra o cultivo de ambições vicinais. Ou mesmo remotas.

O Estado brasileiro tem, portanto, essencial e prioritária responsabilidade com a preservação da integridade do território nacional, isto é, em sua extensão e qualidade. Trata-se de cuidar para que os futuros brasileiros se encontrem amparados por uma reserva de recursos no mínimo equivalente àquela de que a geração atual dispõe. Comprometer essa possibilidade significa incorrer em desídia histórica. No caso, preservar é uma homenagem ao futuro, não ao passado. Não está sendo uma tarefa de somenos.

Inadequado às suas funções presentes, o Estado brasileiro deixa de cumprir suas mínimas obrigações constitucionais - garantia universal de direitos - em largos trechos do território. Nas zonas urbanas, são as áreas controladas pelo tráfico nas quais a tentativa de introduzir ordem pública produz justamente o oposto: desordem e conflitos. Nas regiões de fronteira física ou econômica - caso do Norte e do Centro-Oeste - a apropriação do mundo material tem se dado conforme as leis do mundo natural - cada um por si - sem que o Estado exerça algum poder preventivo e sem que as instituições judiciárias, em ação posterior, funcionem livres da coação local. A ordem legal aparece como invasora do espaço idílico da infernal competição sem regras. Menos do que ausência, verifica-se a insuficiência da capacidade estatal de instituir o solo constitucional da convivência.

Vem a calhar, portanto, o início da retomada pelo Estado da soberania perdida nas regiões do Norte e do Centro-Oeste para a indústria predatória, o contrabando e a apropriação indébita. Todos precisam se convencer de que a Amazônia que nos cabe, assim como o Centro-Oeste, não pertence aos aventureiros do capitalismo nascente, nem às ONGs, nem aos movimentos ecológicos, nem às missões religiosas. O Norte não pode se converter em santuário, objeto de romarias, turismo e reverência como os altares nas estradas da Grécia clássica.

A Amazônia brasileira corporifica excepcional recurso a ser mobilizado e preservado em benefício das futuras gerações de nacionais. Depois de aproximadamente 30 anos de financiamento de pesquisas, fundações de todos os quadrantes e grupos de interesse organizados conseguiram impor, como de urgência, uma agenda de preconceito racialista e de desespero ambiental, causas de solidária aderência à opinião pública. Separe-se o joio do trigo, respeitem-se as demandas legítimas, e que se dê um chega pra lá aos descalabros do cerco ideológico.


Wanderley Guilherme dos Santos, membro da Academia Brasileira de Ciências, escreve quinzenalmente neste espaço


Email: leex@candidomendes.edu.br


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