terça-feira, 24 de junho de 2008

A questão humana


24/06/2008

"Nós como cientistas sociais não podemos supor que entre os homens somos déspotas esclarecidos." - Charles Wrigth Mills, em "A Imaginação Sociológica"


Sobrou-me tempo, no sábado 21/06, para enfrentar "A Questão Humana", no Cinesesc. Descontada a demasia de hermetismo, o filme de Nicolas Klotz revolve as entranhas da sociedade dos "indivíduos livres" que, em seu cotidiano, estão submetidos a formas cruéis de controle. Adaptados, conformados, até mesmo confortados e felizes, são incapazes de compreender que sua liberdade (e seus excessos alcoólicos, promíscuos e egocêntricos) são permissões dos processos da manipulação e de aniquilamento pessoal. Os desumanos agentes do novo totalitarismo são os especialistas, os intelectuais da razão instrumental que decidem o destino do outro. O nazismo do terceiro milênio não usa coturnos nem câmaras de gás. Usa a ciência que não pensa a si mesma e a informação.

Lembrei-me de "velharias", como diriam os comandantes da barbárie midiática up-to-date. Tirei do baú Hanna Arendt e Charles Wrigth Mills. Morto em 1962, aos 46 anos, Charles Wrigth Mills escreveu duas obras primas sobre a sociedade americana - "A Elite do Poder" e "A Nova Classe Média" (White Collar) - que anteciparam a emergência das características da sociedade de massas contemporânea nos EUA.

Mills, um intelectual do velho estilo, estava comprometido com a discussão dos problemas concretos do seu tempo e de sua gente. Crítico implacável dos estilos da ciência servil, lamentava, sobretudo, o abandono do "foco clássico" nos problemas substantivos em favor do que chamava de "ethos burocrático" e do empirismo abstrato.

Mills não escondia sua indignação com o projeto de uma ciência social cujo propósito é a previsão e controle do comportamento humano. Dizia que falar com tanto desembaraço sobre previsão e controle é "adotar a perspectiva do burocrata para quem, como observou Marx, o mundo é um objeto a ser manipulado". Mills era um típico liberal americano do imediato pós-guerra, formado no clima progressista e esperançoso do New Deal. Suas profecias sobre a trajetória da ciência e do conhecimento da sociedade não só se cumpriram como foram ultrapassadas pela capitulação humilhante das ciências sociais diante dos procedimentos pseudocientíficos da economia.



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O nazismo do terceiro milênio não usa coturnos nem câmaras de gás, mas sim a ciência que não pensa a si mesma e a informação
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Hoje em dia, na maioria das vezes, os problemas são definidos em função da possibilidade de tratamento formal e quase nunca em razão de sua relevância para o entendimento e compreensão da dinâmica das sociedades modernas. É a vitória do empirismo abstrato sobre a inteligência.

Charles Wrigth Mills imaginou com impressionante clareza: os estilos de investigação que prezava e praticava como intelectual público seriam avassalados pelo avanço da máquina monopolista, empenhada no controle do destino dos indivíduos livres e na "censura" do debate econômico, social e político. Avizinhava-se "um período e uma sociedade em que a ampliação e a centralização dos meios de controle, de poder, incluem um uso bastante generalizado da ciência social para todos os fins que os homens no controle de tais meios possam lhe atribuir".

Ele se dispôs a investigar dois pontos fundamentais: primeiro, as mudanças na organização econômica capitalista e nas grandes organizações sociais (inclusive nos aparelhos de produção do "saber"). Essas transformações dariam origem a uma concentração sem precedentes do poder e aumentariam a distância entre a elite e as massas; segundo, as perspectivas mentais e ideológicas seriam criadas por um sistema de educação, de informação e de comunicações cada vez mais concentrado e centralizado. Mills não poderia, é claro, imaginar a usurpação quase completa da liberdade de opinião e de informação - prerrogativa dos cidadãos - executada de forma implacável pelos moguls da mídia, transformada, fora as exceções de praxe, em arma de desinformação e de propaganda de interesses.

Nas condições de segmentação, especialização e burocratização do saber, num ambiente de brutal concentração do poder de informar e de definir temas para a discussão, é impossível cumprir a promessa moral e intelectual das ciências sociais de que a liberdade e a razão continuarão como valores aceitos e serão usados de forma séria. Para Mills não há como separar o nascimento das ciências da sociedade das tradições do liberalismo clássico e do socialismo. O colapso destas tradições significa o declínio da individualidade livre e da razão nas questões humanas.

Hanna Arendt, já escrevi nessa coluna, abordou nas "Origens do Totalitarismo" as transformações sociais e políticas na era do capitalismo tardio e da sociedade de massas. A economia dos monopólios promoveu a substituição da empresa individual pela coletivização da propriedade privada e, ao mesmo tempo, a "individualização do trabalho", engendrada pelas novas modalidades tecnológicas e organizacionais da grande empresa. A isto se juntou a conversão ao regime salarial das profissões outrora conhecidas como liberais. A operação impessoal das forças econômicas produziu, em simultâneo, o declínio do homem público e a ascensão do "homem massa, cuja principal característica não é a brutalidade nem a rudeza, mas o seu isolamento e sua falta de relações sociais normais".

Trata-se da abolição do sentimento de pertinência a uma classe social, sem a supressão das relações de dominação. "As massas surgiram dos fragmentos da sociedade atomizada, cuja estrutura competitiva e concomitante solidão do indivíduo eram controladas quando se pertencia a uma classe". A escória, na visão de Arendt, não tem a ver com a situação econômica e educacional dos indivíduos, "pois até os indivíduos altamente cultos se sentem particularmente atraídos pelos movimentos da ralé".

Talvez a perda das relações orgânicas com estas tradições tenha alguma responsabilidade pela obscuridade que contamina os debates entre figuras ilustres e dignas, impotentes diante da mesquinharia da vida política atual e do difícil deslindamento das malhas do poder real que apertam cada vez mais o cerco sobre os cidadãos atônitos.


Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras. E-mail: BelluzzoP@aol.com

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